Em 2002, quando contava 55 anos de idade
e, portanto, não se avizinhava a aposentadoria obrigatória, veiculei as
seguintes ideias:
No clássico "As Viagens de
Gulliver", Jonathan Swift, um dos mais satíricos escritores da língua
inglesa, imaginaum lugar – a terra dos lugnagianos – em que, uma ou duas vezes
a cada geração, nascia uma criança cunhada com uma mancha circular vermelha na
testa, símbolo da imortalidade. Estes seres especiais, por eternos, aos 80 anos
tinham seus bens distribuídos aos descendentes, que de outra forma não os
herdariam. Tristes, alijados, sua sina era acumular rancores e doenças, o que
mais agravava as dores da velhice, sem que lhes aguardasse, porém, o alívio da
morte.
No Brasil, parece que os legisladores se
inspiraram nessa tenebrosa fantasia para marcar com uma espécie de terrível
nódoa vermelha uma classe – os servidores públicos em geral e os membros da
magistratura e do Ministério Público em particular. Estes, sabe-se lá por qual
razão, aos 70 anos são considerados incapazes para continuar trabalhando na
esfera pública, ou seja, sob remuneração do Estado, pouco importando se estejam
no ápice de uma brilhante carreira ou no auge da capacidade produtiva.
Recentemente, deparamos mais uma vez com
um exemplo muito ilustrativo dos malefícios dessa despropositada aposentadoria
compulsória: no último mês de abril, o ministro Néri da Silveira viu-se
compelido a deixar a Corte Suprema do País por ter alcançado sábios 70 anos.
Quem já se deleitou com a imagem magistral de um condor ganhando os céus jamais
haverá de se conformar com o abate desse altivo pássaro, muito menos se em
pleno voo. Pois foi também de perplexidade a sensação que pairou sobre mim por
algum tempo quando da saída do Ministro, secundada por uma série de insistentes
e silenciosas perguntas: a que propósito, nos dias de hoje, serve a vetusta
regra constitucional que sustenta a chamada “expulsória”? Não estaria
visivelmente anacrônica essa norma, introduzida na Carta de 1946, em face dos
avanços tecnológicos que alargaram em muito as expectativas de vida da população?
(No meio acadêmico, alguns cientistas mais entusiasmados afirmam que, para um
homem saudável de 40 anos, tal expectativa é, hoje, de 120 anos.) Não seria
discriminatório um preceito que obstaculiza a atividade de determinados agentes
políticos – os magistrados –, beneficiando com a liberalidade os demais, isto
é, aqueles que integram os Poderes Executivo e Legislativo? Por que se afigura
pouco relevante as idades dos candidatos aos cargos eletivos, casos em que
normalmente o peso dos anos testemunha a favor? Alguém já aventou a
possibilidade de se retirar o mandato do Presidente da República, professor
Fernando Henrique Cardoso, por haver atingido os 70 anos? (Entretanto, o
ministro Maurício Corrêa, o próximo Presidente do Supremo Tribunal Federal, não
poderá completar o mandato para o qual for eleito, já que 11 meses depois de
assumir o cargo,"marcado" pela estranha "pecha", terá de se
aposentar. Forçosamente.) Por último, mesmo sem querer adentrar na espinhosa
discussão acerca da inconstitucionalidade de certos dispositivos
constitucionais, alguém poderia explicar por que, em se tratando dessa
malfadada jubilação, os princípios da isonomia e da liberdade de trabalho,
elevados à condição de cláusulas pétreas, não se sobrepõem a todo o tipo de
filigrana jurídica? Aos que venham a redarguir com o pretexto da legitimidade
proporcionada pelo processo eleitoral, pergunto, de pronto, se teriam alguma
dúvida sobre a consagradora aprovação seguramente obtida pelo ministro Moreira
Alves – decano da Corte e o próximo a ser “aposentado” em virtude da desditosa
norma – no bojo de eventual referendum.
É de fato peculiar a situação dos juízes
brasileiros, em cujo rol de prerrogativas funcionais está a vitaliciedade,
garantia que, por aqui, não significa "enquanto viver" ou enquanto
permanecer capaz e produtivo, diferentemente do que acontece, por exemplo, na
Suprema Corte dos Estados Unidos da América, onde os magistrados ficam no cargo
pelo tempo em que se acharem em condições, alguns chegando aos 90 anos,
cumprindo àquele Tribunal decidir sobre a interdição de algum membro por
incapacidade física.
No Brasil, talvez tudo se deva ao peso
atribuído ao cargo. Julgar realmente é tarefa das mais complexas, a envolver,
sempre, a equação de inúmeros valores. Quem sabe esse aspecto tenha induzido o
legislador a imaginar que tão árdua missão incapacite, com o correr dos dias,
os magistrados, embotando-lhes o entendimento, por isso ficando caducos mais
depressa. O ofício de julgar mostrar-se-ia, assim, dos mais cruéis,
desfavorecendo quem a ele ousou se dedicar. Já pensou se essa desumana lógica
houvesse cerceado a obra de Leonardo da Vinci, Machado de Assis, Handel,
Villa-Lobos, Monet, Matisse, ou, para ser bem contemporâneo, a esplêndida
carreira da nossa Fernanda Montenegro? Na magistratura, o fardo dos anos como
que se revela acachapante, diminuindo paulatinamente quem enverga a toga, ao
reverso do que ocorre nas grandes empresas, cujos executivos são premiados com
títulos pomposos de "masters" ou "seniors", com o que
angariam ainda mais respeito e prestígio – e, por conseguinte, atribuições e
salários mais elevados. Nos poderosos conglomerados econômicos, a experiência é
um bem valioso a ser generosamente recompensado. No serviço público brasileiro,
dá-se o inverso: de um modo geral, investe-se na formação dos servidores como
que os preparando para gerar os melhores frutos no âmbito privado, de vez que,
no vértice da carreira, são coagidos a se afastarem, pouco interessando o
quanto poderiam realizar em prol do serviço público, que tanto ainda deixa a
desejar. Num contra-senso, as maiores autoridades administrativas do País não
cansam de apontar o rombo da Previdência como uma das principais causas do
déficit orçamentário nacional. Quem há de compreender?
Em "Tempo de Memória",
Norberto Bobbio, influente cientista político de nossa era, ao discorrer sobre
o efeito do tempo, testemunha que sua maior dificuldade, aos 80 anos, residia
em conciliar a lucidez dos pensamentos, a agilidade de raciocínio, com a lentidão
dos movimentos própria aos mais idosos. As ordens emanadas de uma cabeça
desenvolta eram processadas de maneira pouco destra pelo corpo cansado.
Convenhamos: tal dificuldade desabilita o genial pensador italiano? De forma
alguma. A sabedoria dos anos mais o credencia no seu incansável mister de,
observando o mundo, descortiná-lo à visão dos menos doutos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a idade
cronológica não é o melhor parâmetro para delimitar a fronteira da velhice,
mostrando-se mais adequado recorrer ao conceito de idade funcional, medida de
acordo com a autonomia do indivíduo, ou seja, à luz da aptidão para realizar
tarefas rotineiras, como fazer compras, cuidar da higiene pessoal, ir sozinho
ao local de trabalho. Se assim é, necessariamente devem ser revistos preceitos
constitucionais que arbitrariamente imprimem um limite não biológico à
capacidade produtiva de um ser humano, que restringem o exercício livre do
universal direito ao trabalho. A aposentadoria há de ser uma recompensa, nunca
um castigo para quem, pelo tanto que se dedicou à causa pública, merece ao
menos ser considerado digno e apto a concluir por si mesmo já ter cumprido a
própria jornada.
Marco
Aurélio Mendes de Farias Mello,
68, é ministro do STF.
Fonte: www.migalhas.com.br
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