A previsão legal de reserva mínima de 30% para cada gênero
na formação de candidaturas dos partidos e das coligações está insculpida no
artigo 10, §3º da Lei nº 9.504/97[1].
§ 3º Do número de vagas resultante
das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o
mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para
candidaturas de cada sexo.
A Procuradoria Geral Eleitoral, em novembro de 2016, enviou orientação
para as Procuradorias Regionais que, por sua vez, orientaram os Promotores das
Zonas Eleitorais a fim de instaurarem Procedimentos Preparatórios Eleitorais,
visando apuração da veracidade das candidaturas de mulheres que receberam zero
voto. Detectadas, ao seu modo de ver, fraudes no preenchimento do percentual
mínimo de 30% das cotas para cada gênero, deveriam propor ações judiciais
eleitorais em face dos responsáveis. A orientação determinou, ainda, excluir do
polo passivo as mulheres eleitas, ou seja, se houver cassação de mandatos será
somente em relação aos candidatos do sexo masculino.
A Orientação GENAFE Nº 01/2016 estipulou dentre outras
medidas [2]
:
h) propor ação de investigação judicial
eleitoral (AIJE) pela fraude praticada como elemento do abuso (REspe 631-84/SC)
em face dos responsáveis por ela e dos candidatos beneficiários do sexo
masculino, excluindo-se do polo passivo as mulheres eleitas, sob pena de, para
se combater ilícito que lesou ação afirmativa, prejudicar integrantes da
minoria que deveriam ter sido por ela beneficiados.
i) propor ação de impugnação de mandato
eletivo (AIME) pela fraude (art.14, § 10, da CR/88 e REspe 1-49/PI) em face dos
candidatos do sexo masculino diplomados, excluindo-se do polo passivo as
mulheres eleitas, sob pena de, para se combater ilícito que lesou ação
afirmativa, prejudicar integrantes da minoria que deveriam ter sido por ela
beneficiados.
A partir desta orientação foram promovidas inúmeras de ações
judiciais eleitorais país afora.
A legítima e oportuna campanha pela maior participação
feminina no processo eleitoral brasileiro, coincidindo com os resultados das
eleições de 2016, serviu de motivação especial para a iniciativa do Ministério
Público.
É importante frisar que a lei eleitoral trata de reserva
mínima de cotas de cada gênero. Não trata de proteção a um determinado gênero.
Ainda que se defenda que o gênero masculino sobrepõe há tempo no processo político
brasileiro não se pode por conta desta
desproporção forçar reconhecimento de ilícitos eleitorais sem previsão legal, em
especial, aqueles que redundem em cassação de mandato sob pena de prática de
abuso, ainda que em defesa de uma boa causa.
Há quem diga que não se pode invocar a boa-fé dos candidatos
masculinos em detrimento das eventuais “candidaturas laranjas” das mulheres no
preenchimento mínimo dos 30% de cotas de cada gênero. É dito que é obrigação de
todos os candidatos o conhecimento das regras tocante ao regular preenchimento das
cotas mínimas de gênero e da sua regular campanha eleitoral.
No entanto, a boa-fé pode ser invocada, uma vez que as regras
de registro de candidatura estão postas em capitulação própria na Lei nº
9.504/97 - artigos 10 ao 16-B. Desde o advento da Lei nº 12.034, em 2009, não
houve alterações na Lei das Eleições, nem tampouco as resoluções do TSE
trataram da matéria de maneira inovadora.
Frise-se, nunca antes houve a extensão proposta agora pelo
Ministério Público por meio das inúmeras ações judiciais eleitorais.
Não há nenhum artigo na legislação eleitoral, nem tampouco nas
resoluções do TSE que obrigue os candidatos a vigiarem e fiscalizarem os atos
de campanha dos seus próprios companheiros de partido ou de coligação.
A busca do Ministério Público pela cassação dos mandatos unicamente
dos candidatos homens por meio da anulação do DRAP por fraude, ressalvando os
mandatos das candidatas mulheres, deve ser rechaçado. Não é possível a anulação
de parte do DRAP sem atingir ambas as candidaturas, tanto de homens quanto de
mulheres, pois constam do mesmo DRAP.
Zero voto por si só não indica fraude eleitoral. A invocação
do REsp 149, do Piauí, feita por alguns, não é suficiente para embasar tamanho
intento de desconstituição de mandatos originados do voto popular, ditos
soberanos. A força de desconstituição precisa ser, sobretudo, revestida de
ilicitude tipificada por lei. Não há lei
para tal, nem jurisprudência neste sentido. O que há é um precedente do TSE -
REsp 149 que, diga-se de passagem, ampliou os limites da fraude a ser examinada
por meio de AIME – Ação de Impugnação de Mandato Eletivo. Casualmente, a AIME do
REsp 149 teve como objeto o preenchimento dos percentuais de cotas de gênero,
mas, sequer foi examinado ainda o mérito pelo TSE.
Daí, dizer que todo e qualquer campanha de mulheres
candidatas com zero votos significa que há revestimento de fraude é totalmente exagerado
e descabido.
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE
MANDATO ELETIVO. CORRUPÇÃO. FRAUDE. COEFICIENTE DE GÊNERO. 1. Não houve
violação ao art. 275 do Código Eleitoral, pois o Tribunal de origem se
manifestou sobre matéria prévia ao mérito da causa, assentando o não cabimento
da ação de impugnação de mandato eletivo com fundamento na alegação de fraude
nos requerimentos de registro de candidatura. 2. O conceito da fraude, para
fins de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14, § 10, da
Constituição Federal), é aberto e pode englobar todas as situações em que a
normalidade das eleições e a legitimidade do mandato eletivo são afetadas por
ações fraudulentas, inclusive nos casos de fraude à lei. A inadmissão da AIME,
na espécie, acarretaria violação ao direito de ação e à inafastabilidade da
jurisdição. Recurso especial provido.
(TSE - RESPE: 149 JOSÉ DE FREITAS - PI,
Relator: HENRIQUE NEVES DA SILVA, Data de Julgamento: 04/08/2015, Data de
Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 21/10/2015, Página 25-26) [3]
Não há ainda jurisprudência sobre a matéria. Há poucos precedentes.
Para se dizer que há jurisprudência é necessário o tribunal reunir vários
precedentes semelhantes. Os poucos precedentes existentes nos Tribunais
Regionais Eleitorais são no sentido de rejeitar a fraude sem provas
contundentes.
À luz dos princípios da legalidade, razoabilidade e
proporcionalidade traz-se para a reflexão importante precedente do TRE/RS, que
por ocasião das eleições de 2012, confirmou que a ação judicial sem provas
contundentes de fraude deve ser rejeitada.
RECURSO. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. RESERVA DE
GÊNERO. FRAUDE ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012.
Matéria preliminar afastada.
Suposta fraude no registro de três candidatas apenas para
cumprir a obrigação que estabelece as quotas de gênero, contida no art. 10, §
3º, da Lei n. 9.504/97.
A circunstância de não terem obtido nenhum voto na eleição
não caracteriza por si só a fraude ao processo eleitoral. Tampouco a
constatação de que haveria propaganda eleitoral de outro candidato na casa de
uma delas.
Provimento negado.
(Ação de Impugnação de Mandato Eletivo nº 76677, Acórdão de
03/06/2014, Relator(a) DESA. FEDERAL MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE,
Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 99, Data
05/06/2014, Página 6-7 )[4] (Grifo nosso)
É de se destacar do acordão as seguintes assertivas.
(...)
Ademais, não encontro na legislação qualquer sanção para o
virtual descumprimento da louvável política afirmativa em discussão. Assim, não
há amparo em dispositivo legal para a cassação dos diplomas de todos os demais
candidatos do partido acionado, tal como postula o recorrente, sob pena de
responsabilização objetiva não prevista em lei.
Note-se que as quotas de gênero estão efetivamente inseridas
no debate constitucional das políticas afirmativas. Mas o que aqui se discute é
tão somente o desdobramento de tal política na seara eleitoral a qual resta,
talvez, sujeita à incompletude, porquanto, ainda que tal fraude houvesse sido
detectada, seria destituída de desdobramentos no balanço eleitoral. Não teria
retirado qualquer paridade de armas, ou legitimidade dos eleitos. Alinho-me,
portanto, ao que o TSE decidiu recentemente em Recurso Especial com origem no
Rio Grande do Sul:
Representação. Eleição proporcional. Percentuais legais por sexo.
Alegação.
Descumprimento posterior. Renúncia de candidatas do sexo
feminino.
1. Os percentuais de gênero previstos no art. 10, § 3º, da
Lei nº 9.504/97 devem ser observados tanto no momento do registro da
candidatura, quanto em eventual preenchimento de vagas remanescentes ou na
substituição de candidatos, conforme previsto no § 6º do art. 20 da Res.- TSE
nº 23.373.
2. Se, no momento da formalização das renúncias por
candidatas, já tinha sido ultrapassado o prazo para substituição das
candidaturas, previsto no art. 13, § 3º, da Lei nº 9.504/97, não pode o partido
ser penalizado, considerando, em especial, que não havia possibilidade jurídica
de serem apresentadas substitutas, de modo a readequar os percentuais legais de
gênero.
Recurso especial não provido.
(Recurso Especial Eleitoral nº 21498, Acórdão de 23/05/2013,
Relator(a) Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, Publicação: DJE - Diário de justiça
eletrônico, Tomo 117, Data 24/6/2013, Página 56 )
Colho do voto exarado pelo ministro Henrique Alves da Silva,
acolhido por unanimidade por seus pares, parte de seu raciocínio:
No presente caso, considerado pelo acórdão regional que a
recorrida respeitou os limites legais de gênero no momento inicial dos
registros de candidatura, não vejo como sustentar a alegada infração ao art.
10, § 3 0, da Lei n° 9.504/95, uma vez que as vagas foram efetivamente
preenchidas.
Isso porque o dispositivo em comento, como já dito, tem o
escopo de permitir o acesso às candidaturas de acordo com os limites previstos
para cada sexo. Tal garantia deve ser respeitada tanto no preenchimento das
vagas inicialmente requeridas quanto no das remanescentes.
Porém, depois que os partidos políticos e coligações
escolhem seus candidatos e os apresentam à Justiça Eleitoral, o bem jurídico
tutelado pela ação afirmativa é atingido. E as agremiações, ressalvada a
hipótese de expulsão dos quadros partidários, não detêm o poder de cancelar as
candidaturas registradas.
(…)
Em suma, o objetivo da política pública de incentivo à
participação igualitária de candidaturas foi respeitado pela coligação no
momento próprio. O ato de renúncia é unilateral, pessoal e independe da vontade
das agremiações; E, por fim, quando ocorreram as desistências das candidaturas,
não havia possibilidade jurídica de serem apresentadas substitutas.
No mesmo sentido, destaco ementa do bem lançado voto da
lavra do Dr. Luis Felipe Paim Fernandes, membro efetivo desta Corte:
Recurso. Conduta vedada. Reserva legal de gênero. Art. 10, §
3º, da Lei n. 9504/97. Vereador. Eleições 2012.
Representação julgada improcedente no juízo de origem.
Obrigatoriedade manifesta em alteração legislativa efetivada
pela Lei n. 12.034/09, objetivando a inclusão feminina na participação do
processo eleitoral.
Respeitados, in casu, os limites legais de gênero quando do
momento do registro de candidatura. Atingido o bem jurídico tutelado pela ação
afirmativa.
O fato de as candidatas não terem propaganda divulgada ou
terem alcançado pequena quantidade de votos, por si só não caracteriza burla ou
fraude à norma de regência. A essência da regra de política pública se limita
ao momento do registro da candidatura, sendo impossível controlar fatos que lhe
são posteriores ou sujeitos a variações não controláveis por esta Justiça
Especializada.
Provimento negado.
(TRE/RS, RE 417-43, Rel. Luis Felipe Paim Fernandes, Sessão
de 07/11/2013).
Ainda, por oportuno, transcrevo excerto das razões do
referido voto exarado no RE 417-43, haja vista a similitude com o caso ora
analisado:
É cediço que, quando do registro de candidatura, as
candidatas submeteram seus nomes. Pelo conjunto probatório coligido aos autos
transparece que não desenvolveram atos de campanha. Entretanto, a configuração
de ilicitude não decorre de dedução ou presunção. Sabe-se que muitos candidatos
desistem, efetivamente, de suas posições. A submissão de candidatura é também
ato unilateral fundado na declaração de vontade humana. Não há qualquer regra
que impeça a reversão dessa declaração ou que imponha o status de candidato do
início ao fim do pleito eleitoral. O critério da legalidade, oriundo de matriz constitucional, poderia suprimir a
liberdade inerente aos pleiteantes aos
mandatos eletivos, mas não o faz, e onde a Constituição silencia, não pode o
intérprete restringir.
Sabe-se, ainda, que o embate político busca, muitas vezes, a
satisfação de seus apetites na própria Justiça Eleitoral. Dessa maneira, é
frequente que os pedidos não se revoltem quanto a efetivas ilegalidades, mas
apenas quanto à situações políticas desfavoráveis. A efetiva realização de justiça
determinaria que todas as candidaturas, de todos os partidos, fossem auditadas
após o pleito, para verificar quais, em realidade, cumpriram a reserva de
gênero, sob pena de se respaldar pedido de quem também não tenha observado a
regra a qual quer emprestar maior amplitude.
Aliás, qual a essência da regra discutida? Penso que ela se
limita ao registro, sendo impossível apurar fatos que lhe são posteriores e
estão sujeitos à inúmeras variações não controláveis por essa Justiça
Especializada.
(...)
Sublinho a importância vital da participação de cada gênero
na comunidade política. Mulheres e homens devem possuir reais chances de
realizar-se e desenvolver-se politicamente. Tal missão está confiada aos
partidos políticos e a diversas instâncias da sociedade civil, senhora dos seus
próprios destinos e das conformações que desejar adotar.”
Adiciona-se que não há obrigatoriedade aos
candidatos para aderirem ao sistema convencional de campanha eleitoral com usos
padronizados de propaganda eleitoral, comícios, reuniões, jingles, santinhos,
cartazes, dentre outros. Os candidatos são livres para exercerem seu direito de
pedir voto, ainda que corram o risco de receberem zero voto.
No mesmo sentido, não há ilegalidade na
desistência das candidaturas. Porém, se, de fato, houver desistência, os
candidatos devem comunicar à Justiça
Eleitoral. Se não houver comunicação não há que se falar em ilicitude e sim em
irregularidade, pois não há previsão de penalização. Dizer que quem desiste
comete, automaticamente, fraude eleitoral, beneficiando o seu partido ou a sua coligação
é um longo caminho de necessária prova contundente.
A causa da maior participação feminina na
política e da efetiva campanha eleitoral uma vez registradas as candidaturas é
legítima e oportuna. Para que haja o controle judicial do preenchimento de
percentual mínimo das cotas de gênero e sua regular participação no processo
eleitoral com possível penalização aos que praticarem fraudes por meio de candidaturas laranjas” é indispensável que haja previsão legal para
tanto. A propositura de ações judiciais, sob fundamento de fraude eleitoral, para
desconstituir mandatos eleitorais de candidatos homens por conta de que
mulheres candidatas receberam zero voto, por si só, é abusiva.
José Luís Blaszak – professor e advogado
eleitoralista. Foi juiz membro do TRE/MT.
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.htm
[2] http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Orientaon01Mulheres.pdf
[3] https://tse.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/348591484/recurso-especial-eleitoral-respe-149-jose-de-freitas-pi/inteiro-teor-348591496
[4] http://www.tre-rs.jus.br/arquivos/RE_76677.pdf