Pesquisar este blog

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

FICHA LIMPA - VOTO VISTA DO MINISTRO JOAQUIM BARBOSA NA ADC/STF

01/12/2011 PLENÁRIO
AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE 29 DISTRITO FEDERAL
VOTO–VISTA
O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA: Senhor Presidente, mais uma vez, esta Corte se debruça sobre o tema das inelegibilidades e sobre a constitucionalidade da conhecida Lei da Ficha Limpa.
Busca-se, agora, estabelecer a inteligência do § 9o do art. 14 da Constituição Federal (com a redação dada pela EC de Revisão 4/1994), dispositivo que, numa clareza incomum, trouxe comando específico direcionado ao Congresso Nacional, para que este promulgasse lei complementar na qual ficassem claramente estabelecidos os casos de inelegibilidade destinados a proteger “a probidade administrativa”, “a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa” e a “normalidade e legitimidade das eleições”. Eis o teor da norma constitucional:
Art. 14. (...)
§ 9o Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação da EC de Revisão no 04/94)
Este mandamento constitucional, materializado inicialmente na LC 64/1990, veio a ser aprimorado no ano passado com a promulgação da LC 135/2010, também qualificada como Lei da Ficha Limpa. Aprimorado, aperfeiçoado para fazer frente às mais sofisticadas formas de corrupção que vêm sendo forjadas nos últimos anos pelos homens políticos brasileiros, pela classe política brasileira.
Trata-se de um rampart de verdadeiros pilares morais que a Constituição Federal de 1988 quis erguer à condição de critérios absolutos para o exercício dos cargos públicos: a probidade, a moralidade e a legitimidade das eleições.
É interessante mencionar que esses critérios de probidade, moralidade, normalidade e de legitimidade das eleições foram inseridos pela primeira vez na Constituição de 1967, que, em seu art. 148, determinava:
Art. 148 - A lei complementar poderá estabelecer outros casos de inelegibilidade visando à preservação:
I - do regime democrático;
II - da probidade administrativa;
III - da normalidade e legitimidade das eleições, contra o
abuso do poder econômico e do exercício dos cargos ou funções públicas.
Essa mesma norma foi reproduzida na EC 1/1969, em seu art. 151, acrescentando-se ao texto normativo a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato. O dispositivo ganhou também um caráter impositivo ao frisar que a lei complementar estabeleceria os casos de inelegibilidade. Eis o teor do referido dispositivo:
Art. 151. Lei complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos dentro dos quais cessará esta, visando a preservar:
I - o regime democrático;
II - a probidade administrativa;
III - a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprêgo públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico; e.
IV - a moralidade para o exercício do mandato, levada em consideração a vida pregressa do candidato.
Posteriormente, com a EC 8/1977 (o Pacote de Abril), a expressão “considerada a vida pregressa do candidato” foi transferida para o caput do artigo 151, que passou a ter a seguinte redação:
Art. 151. Lei complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos nos quais cessará esta, com vistas a preservar, considerada a vida pregressa do candidato:
I - o regime democrático;
II - a probidade administrativa;
III - a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprêgo públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico; e.
IV - a moralidade para o exercício do mandato.
Ao analisar este dispositivo, o professor Adilson Abreu Dallari, em 1987, afirmou o seguinte:
No art. 151, a Constituição prevê a edição de uma lei complementar dispondo sobre inelegibilidade mas já apresenta as finalidades desse instituto, quais sejam, a preservação do regime democrático, da probidade administrativa, “a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico”, e a moralidade para o exercício do mandato. (...) especial consideração deve ser tributada à questão central, qual seja, a inelegibilidade de quem quer que, no exercício de qualquer função, possa disso valer-se em proveito próprio, interferindo no resultado do pleito. Este é o ponto básico da questão. Este deveria ser o referencial para exame e decisão das inúmeras e infindáveis questões práticas e concretas que podem ocorrer”. P.10
O Professor Dallari tece duras críticas à Lei Complementar 5/1970, que regulamentou o mencionado art. 151 da Constituição pretérita, ressaltando a não concretização daqueles valores constitucionais de probidade e moralidade, quando já havia a obrigatoriedade de levar em consideração a vida pregressa do candidato.
Vê-se, portanto, que, mais de 40 anos atrás, já possuímos norma constitucional que determinava a consideração da vida pregressa dos candidatos para fins de inelegibilidade, cujas causas deveriam ser estabelecidas em lei complementar. E foram muitos anos sem que uma lei complementar consequente, em harmonia com o “espírito do texto constitucional” (na expressão de Dallari) fosse elaborada.
Aliás, é importante mencionar, nas palavras de Caio Tácito, que “a Constituição de 1988 realça e destaca, em diversos de seus preceitos, a importância da moralidade administrativa entre os pressupostos máximos do sistema constitucional”[1][1]. Após discorrer sobre a história da corrupção e desvios de conduta pelos administradores públicos, o professor Caio Tácito acrescenta:
“Mais construtiva, porém, do que a sanção de desvios de conduta funcional será a adoção de meios preventivos que resguardem a coisa pública de manipulações dolosas ou culposas. Mais valerá a contenção que a repressão de procedimentos ofensivos à moralidade administrativa. Os impedimentos legais à conduta dos funcionários públicos e as incompatibilidades de parlamentares servem de antídoto às facilidades marginais que permitem a captação de vantagens ilícitas”.
Daí a relevante tarefa do legislador complementar de, calcado no art. 14, § 9o da Constituição, estabelecer outros casos de inelegibilidade destinados especificamente a proteger esses valores constitucionais da moralidade, da probidade e da normalidade e legitimidade das eleições, criando, assim, outras modalidades de inelegibilidade além daquelas já previstas diretamente na Constituição.
Afinal, a inelegibilidade, como afirmou Pinto Ferreira, em artigo publicado na Revista Forense, no ano de 1959[2][2], “é um impedimento de ordem pública que visa, sobretudo, a moralização do voto e o interesse social, amparando consequentemente dita ordem pública. Daí a importância que as Constituições ou as legislações eleitorais lhe atribuem por toda a parte e em diversas épocas”.
Não obstante a clareza da norma constitucional, e mesmo tendo presente a nossa arraigada tradição de patrimonialismo, é profundamente entristecedor que se tenha levado tanto tempo para se incluir no ordenamento jurídico brasileiro essa tão importante alteração legislativa destinada a compatibilizar a legislação infraconstitucional relativa às inelegibilidades aos postulados constitucionais do § 9o do art. 14 da Constituição Federal.
Nesse ponto, releva destacar que a Lei Complementar 64/1990, com fundamento no § 9o do art. 14 da Constituição já estabelecera algumas causas de inelegibilidade. Contudo, ao longo dos mais de 20 anos de sua vigência, a forma como estabelecidas as causas de inelegibilidade demonstraram-se inaptas à proteção desses mais elevados valores emanados da nossa Constituição. Em particular, os exíguos prazos de duração da inelegibilidade em relação à duração dos mandatos eletivos aliado à exigência de trânsito em julgado de decisões de condenatórias.
Assim, e levando-se em consideração especificamente a vida pregressa dos candidatos, foi preciso que a sociedade brasileira, num raro momento de efetiva mobilização, reunisse número suficiente de assinaturas para apresentar projeto de lei complementar destinado a, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
Somando-se a outros projetos já existentes sobre o assunto, não se pode negar que um projeto de lei de iniciativa popular que trata especificamente de um tema diretamente ligado à escolha dos nossos representantes, revela muito mais do que uma simples mobilização social. Revela, sobretudo, um despertar de consciência a respeito do real significado da democracia e de um dos seus elementos constitutivos essenciais que é a representação política. Sem dúvida, há na sociedade brasileira um clamor pela superação do nosso passado clientelista e patrimonialista e pela transição para um futuro de virtude e de coparticipação. O que se busca é o abandono da complacência e da conivência com a falta de moral, de honestidade, que aqui e ali ganham foros de aceitação até mesmo pela via de expressões jocosas que não rarocaem no gosto popular, como é o caso da execrável “ROUBA MAS FAZ”. O objetivo é avançar rumo a uma exigência efetiva de ética e transparência no manejo da “coisa pública”, da res publica.
Volto, pois, a enfatizar, não foi a iniciativa dos senhores parlamentares, mas sim a mobilização de um número expressivo de nossos concidadãos que fez com que a Lei Complementar 135/2010 viesse finalmente a dar efetividade ao comando constitucional, homenageando um dos valores fundamentais da República que é a moralidade e a honestidade no exercício das funções públicas. E não é demasiado recordar, como o fez Djalma Pinto, “a Constituição, em diversos artigos, exige probidade para o exercício de qualquer função pública, recomendando inclusive, a cassação dos direitos políticos e o afastamento do cargo nos casos de corrupção. O repúdio à improbidade pode ser aferido pela ênfase emprestada ao tema por nossa Lei Maior”[3][3].
Mas não é só. Ao dar especificidade e concretude a todo um conjunto de normas, não por acaso inseridas no capítulo dos direitos fundamentais de cunho cívico e político, até então simploriamente regulamentada pelo legislador infraconstitucional, criou-se entre nós, a pretexto de conferir proteção ao bem comum e ao interesse público, um verdadeiro Estatuto da Moralidade no Processo Eleitoral.
Nessa ordem de ideias, entendo que os critérios eleitos pelo legislador complementar, critérios estes, vale frisar, nascidos e fomentados no seio de nossa sociedade, defendidos e exigidos por movimento social expressivo, estão em perfeita harmonia com a Lei Maior.
Com todas as vênias aos que pensam de modo diferente, as alegações de inconstitucionalidades dessa lei decorrem de uma interpretação limitada da Constituição Federal, que privilegia uma minoria de ocupantes de cargos eletivos em detrimento de toda a sociedade que anseia pela moralização da política brasileira, para que não haja mais engodo do eleitorado, manipulações e falsas promessas, para que os eleitores comecem a ter liberdade de escolha real, verdadeira.
É chegada a hora de a sociedade ter o direito de escolher e de orgulhar-se de poder votar em candidatos probos, sobre os quais não recaia qualquer condenação criminal; sobre os quais não pairem dúvidas sobre o envolvimento em crimes ou malversação do dinheiro público; sobre aqueles que honram seus mandatos até o fim; sobre aqueles que têm por preocupação o interesse público e não o interesse pessoal.
Assim, como diversas vezes já afirmei nesse Plenário, eu analiso a Lei Complementar 135/2010, sob a ótica da valorização da moralidade e da probidade no trato da coisa pública, sob a ótica da proteção ao interesse público, e não para o fim de proteção preferencial aos interesses puramente individuais e privados. É chegada a hora de por cabo a esse viés patrimonialista que nos marca como nação: o de sempre mesclar interesse público e interesse privado e o de privilegiar o privado em detrimento do público. Nessa ordem de ideias, incumbe sempre dar prevalência à ótica interpretativa que privilegie a proteção dos interesses maiores de toda a coletividade, que afirme a probidade e a moralidade administrativas como valores superiores da nossa polis, que coíba o abuso no exercício de funções públicas, pois são estes vetores, em última análise, os mais elevados valores a serem preservados quando se tem em jogo o exercício dos direitos políticos, especialmente na perspectiva passiva.
Não cabe, a meu ver, neste campo, sobrevalorizar o individualismo em detrimento do coletivo. Na ponderação entre os valores concernentes aos direitos políticos individuais e os valores referentes aos direitos políticos em sua dimensão coletiva, os primeiros devem ceder pontualmente em face de um princípio de maior envergadura constitucional que é a própria democracia e os seus mecanismos operativos. É que a Democracia não constituirá nada além de um mero conceito vazio se não estiver revestida de legitimação.
E certamente inexiste legitimação política numa democracia representativa em que possam se eleger para cargos públicos pessoas que ostentem um prontuário judicial com condenação por qualquer das condutas elencadas na Lei Complementar 135/2010, após serem julgadas por duas instâncias do Poder Judiciário, a instância monocrática e a instância colegiada.
Feitas essas considerações iniciais, passo a analisar as ações declaratórias de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade.
Preliminarmente, acompanho o relator quanto ao conhecimento da ação.
No mérito, como já me manifestei nesse Plenário, mais de uma vez, entendo que a lei complementar 135/2010 é compatível com a Constituição Federal de 1988, em especial com o que determina o seu § 9o do art. 14. Mais do que isso: considero que a referida lei ao complementar o dispositivo constitucional a ele se integra para formar um todo que poderíamos qualificar como Estatuto da Ética e da Moralidade da Cidadania Política Brasileira, vocacionado a reger as relações entre o Eleitor e seu Representante.
Gostaria, contudo, de tecer algumas considerações sobre o princípio da presunção de inocência, já me manifestando em total acordo com o belíssimo voto do eminente Relator nesse ponto.
Inicialmente, relembro a conhecida afirmação de que “inelegibilidade não é pena”, ou seja, de que as hipóteses que tornam o indivíduo inelegível não são punições engendradas por um regime totalitário, mas sim distinções, baseadas em critérios objetivos, que traduzem a repulsa de toda a sociedade a certos comportamentos bastante comuns no mundo da política. Os que adotam esses comportamentos não podem, obviamente, ter pretensão legítima a ascender à condição de representante do povo. Porque não são penas, as inelegibilidades não guardam pertinência com o princípio da presunção de inocência, isto é, não exigem, para a sua configuração, que se dê margem a especulações de caráter subjetivo a respeito do fato que as gerou. A inelegibilidade não constitui uma repercussão prática da culpa ou do dolo do agente político, mas apenas a reprovação prévia, anterior e prejudicial às eleições, do comportamento objetivamente descrito como contrário às normas da organização política.
Por não serem penas, às hipóteses de inelegibilidade não se aplica o princípio da irretroatividade da lei e, de maneira mais específica, o princípio da presunção de inocência. A configuração de uma hipótese de inelegibilidade não é o resultado de um processo judicial no qual o Estado, titular da persecução penal, procura imputar ao pretenso candidato a prática de um ato ilícito cometido no passado. As hipóteses de inelegibilidade partem de um ato ou fato público, notório, de todos conhecido. Sua configuração é imediata, bastando para tanto a mera previsão legislativa. Não se exige, para que seja considerada constitucional, o respeito a outros princípios manifestamente associados à persecução penal, os quais foram inseridos na Constituição com objetivo de conferir proteção ao mais importante bem da vida, a liberdade individual de ir e vir. Mesclar princípios pertencentes a searas constitucionais distintas é, a meu ver, atitude defesa ao juiz constitucional, sobretudo se o objetivo explícito ou implícito é a conservação das mazelas sócio-políticas que afligem cada país. A jurisdição constitucional não foi concebida com esse intento. Ao contrário, a jurisdição constitucional tem precisamente entre as suas metas a extirpação dessas mazelas.
Aliás, creio ser importante registrar que mesmo em relação ao Direito Penal, na jurisprudência desta Corte, durante muito tempo, prevaleceu o entendimento de que era possível a execução provisória da sentença condenatória criminal na pendência dos recursos extraordinário e especial que, como se sabe, são desprovidos de efeito suspensivo. Dito de outra forma, a Corte tinha até recentemente sólida jurisprudência que sufragava o entendimento no sentido de que a condenação criminal em duas instâncias de jurisdição já autorizava a determinação do cumprimento da pena. Ou seja, afastava-se o princípio da presunção da não-culpabilidade e executava-se a pena após o pronunciamento de mérito do órgão judicial colegiado. Cito como referência nesse sentido aquele que é considerado um dos leading cases na matéria, julgado por este Plenário: o HC 69.964 (rel. min. Ilmar Galvão, DJ 18.12.1992). Após tal julgado, o precedente se estabeleceu em ambas as Turmas da Corte (cf., por exemplo, RHC 85.024, rel. min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ 10.12.2004; RHC 81.786, rel. min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ 26.04.2002; HC 82.490, rel. min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 29.11.2002; Pet 2.861, rel. min. Ellen Gracie, Primeira Turma, DJ 13.06.2003).
A partir de 2004, em decorrência da mudança de composição do Tribunal, esse tema foi revisitado. Com efeito, em 2009, quando foi concluído o julgamento do HC 84.078, rel. min. Eros Grau, a Corte firmou o entendimento no sentido de que “a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar”.
Portanto, mesmo na jurisprudência desta Corte em matéria penal verificamos que o princípio da presunção de inocência ou da não- culpabilidade cedia diante de decisão condenatória proferida por órgão colegiado.
Assim, se durante quase duas décadas essa Corte considerou possível o afastamento do princípio da presunção da não-culpabilidade mesmo em seu campo próprio de incidência que é o Direito Penal, é incompreensível que se queira, nesse momento de consternação com os rumos que vem tomando a política nacional, fazer o caminho inverso, isto é, subtrair esse princípio do seu campo próprio de aplicação e trazê-lo de empréstimo para o domínio eleitoral, onde prevalecem outros valores, onde a ótica primordial a ser adotada pelo intérprete é aquela que confira maior proteção à sociedade, e não ao indivíduo, ou aos grupos e igrejinhas a que ele eventualmente pertença. Aqui, a primazia é de quem elege, isto é, da sociedade, do eleitor, que não quer e não se vê representado por pessoas que ostentam em seu currículo nódoas tão repugnantes como as que são elencadas na Lei da Ficha Limpa.
Por outro lado, não se deve esquecer que as inelegibilidades elencadas na Lei Complementar 135/2010 não constituem novidade entre nós, sobretudo se analisadas sob o ângulo do seu suposto rigor. Elas não representam o agravamento das limitações a direitos fundamentais tradicionalmente admissíveis entre nós. Com efeito, durante quase a metade da nossa história como nação livre e independente um contingente expressivo de brasileiras e de brasileiros sempre esteve excluído, pelas mais diversas razões, do processo político-eleitoral, tanto na perspectiva ativa quanto na passiva. Na Constituição de 1891, por exemplo, eram inelegíveis os não alistáveis (art. 70, § 2o) e eram não alistáveis os mendigos, por exemplo. Aliás, é interessante mencionar que, na Constituição de 1891, não havia qualquer norma constitucional impedindo as mulheres de se alistarem. O que as impedia e, por consequência, as tornava inelegíveis era a tradição patriarcal e o entendimento dos homens de que a mulher não tinha capacidade intelectual para tanto. Assis Brasil chegou a afirmar textualmente que “essa incapacidade não está tanto na falta de cultura intelectual como na índole da educação em vigor. Em conclusão, no Brasil, onde a mulher ainda não tem competência para imiscuir-se em eleições, o sufrágio deve ser universal, mas só para homens.”[4][4]. Essa situação foi sanada pelo Código Eleitoral de 1932 e, em seguida, pela Constituição de 1934 que passou a estabelecer expressamente que eram eleitores “os brasileiros de um e de outro sexo”.
Do mesmo modo, a grande maioria dos negros e dos índios não gozavam de cidadania plena, pois eram excluídos do processo eleitoral. Para se chegar a essa conclusão, abominável na nossa perspectiva moderna, eram valiosos, claro, os préstimos dos bacharéis, da elite coimbrã: os negros não libertos não votavam por força de sua própria condição social: eram vistos como coisas, objeto de propriedade privada, como todos o sabemos. É bom ter em mente igualmente que até a década de 30 do século passado, participavam do processo político no Brasil uma ínfima minoria que não ultrapassava os 3% ou 5% da população total, como bem aponta o ilustre historiador José Murilo de Carvalho em sua indispensável obra “Cidadania no Brasil – um longo caminho”.
Com efeito, o professor José Murilo de Carvalho traz dados muito expressivos acerca da irrisória participação política dos brasileiros até mais ou menos a metade do século passado, não sendo ocioso recordar que a exclusão do direito de votar implicava automaticamente a exclusão do direito de ser votado. Em outras palavras, quase é possível afirma que a inelegibilidade era a regra.
Assim, por exemplo, a Constituição de 1824, que para os padrões da época era bastante liberal, permitia o voto aos homens maiores de 25 anos que tivessem renda mínima de 100 mil-réis. Existiam, ainda, exceções a esse limite de idade, que caía para 21 anos nos casos de chefes de família, oficiais militares, bacharéis, clérigos e empregados públicos. Ainda assim, de acordo com o censo de 1872, apenas 13% da população total, excluídos os escravos, votavam. É interessante registrar, também, que a Constituição de 1824 considerava inelegíveis os que não professassem a religião do Estado[5][5].
Em 1881, a legislação retrocedeu significativamente, ao aumentar o limite de renda para 200 mil-réis e excluir do processo eleitoral os analfabetos. Considerando que somente 15% da população era alfabetizada e que somente 20% da população masculina era alfabetizada, foram excluídos do direito de votar (e por conseguinte de ser votado), 80% dos homens.
José Murilo de Carvalho alerta para as drásticas consequências da inovação legislativa de 1881, afirmando que, em 1872, havia mais de 1 milhão de votantes ou 13% da população livre. Já em 1886, isto é, após cinco anos de vigência da nova regra eleitoral, votaram nas eleições parlamentares pouco mais de 100 mil eleitores, ou seja, 0,8% da população, o que significou um corte de quase 90% do eleitorado, numa época em que os países europeus caminhavam para ampliar os direitos políticos. E esse retrocesso foi duradouro. Na última eleição presidencial da Primeira República, em 1930, votaram apenas 5,6% da população brasileira. Mesmo em 1945, já sob a égide da Constituição de 1934 e da extensão do direito ao voto às mulheres, compareceram às urnas apenas 13,4% dos brasileiros, o que correspondia a pouco mais de 7,5 milhões de eleitores.
Esses números são reveladores, especialmente quando comparados aos atuais 136.072.921 de eleitores, o que equivale a pouco mais de 70% da população total do país.
Esses números mostram: temos um notável passado de exclusão de eleitores, mas de pobres controles sobre a qualidade do eleito.
Ora, com um passado e um presente como esse, de restrições constitucionais, legais, “sociais” e “costumeiras” ao exercício da capacidade política ativa e passiva de extratos significativos da nossa população, parece-me insustentável a tese que rechaça a imposição de inelegibilidades a pessoas que se enquadram nas hipóteses da Lei da Ficha Limpa. Isto é, pessoas comprovadamente corruptas, ímprobas, que responderam e foram condenadas sob o devido processo legal por fatos extremamente graves, fatos esses que não mais poderão ser legalmente revistos, revisitados ou revertidos por qualquer Corte de Justiça do nosso
País!
Portanto, senhor Presidente, não vislumbro na lei qualquer ofensa ao princípio da presunção de inocência.
Em relação à alínea k, peço vênia ao Ministro relator, para dele divergir e assentar a constitucionalidade do referido dispositivo.
Retorno ao ponto que me parece central neste processo: a tese de que as inelegibilidades possuem estatura constitucional cujo ponto de apoio é o § 9o do art. 14. É o compromisso ali estabelecido que foi honrado com a edição da lei complementar 135/2010, ora em discussão. Qualquer interpretação rigorosa da Constituição conduz à convicção de que o § 9o é o fundamento da lei de inelegibilidade, especialmente a preocupação, ali claramente manifestada, com a vida pregressa dos candidatos.
Com efeito, a ideia de mandato parlamentar, corolário do princípio da representação, está estreitamente ligada à concepção moderna de democracia, mas não apenas de uma democracia de caráter formal. No direito público atual, o representante, por meio do mandato, recebe poderes que lhe são outorgados por todo o povo e não apenas por aqueles que o elegeram. Há, assim, a necessidade de respeito ao múnus outorgado pela sociedade, através da observância concomitante dos pressupostos mínimos de ética e de moralidade, revelados também em um compromisso de servir integralmente ao mandato conferido.
A noção de comprometimento, de dedicação total ao mandato, pode ser traduzida na razoável expectativa de todo o povo de que os candidatos eleitos não venham a renunciar.
Isso porque se percebe, paulatinamente, que a renúncia, descrita nos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, bem como na doutrina majoritária, como ato unilateral, de caráter personalíssimo e irretratável, não deve permanecer como ato despido de maiores atenções ou consequências jurídicas.
Em outros sistemas jurídicos, como na Inglaterra, por exemplo, sequer se admite a possibilidade de um parlamentar renunciar ao mandato. E sistemas existem em que a renúncia é condicionada à aprovação da Assembleia a que pertence o parlamentar, não importando os motivos que a ensejaram.
No Brasil, no texto original da Constituição de 1988, permitia-se a renúncia a qualquer tempo, sem possibilidade de interferência das Casas Legislativas na análise do ato praticado pelo parlamentar.
Posteriormente, através da Emenda Constitucional de Revisão no 6/1994, foi incluído o § 4o ao art. 55 da Constituição da República, que estabelece uma hipótese de suspensão dos efeitos da renúncia, caso o parlamentar esteja submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato. Confira-se:
Art. 55.(...)
§ 4o A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2o e 3o.
Esta norma constitucional se inspirou no Decreto Legislativo n° 16, de 24 de março de 1994, que estabelece:
Art. 1o. A renúncia de parlamentar sujeito à investigação por qualquer órgão do Poder Legislativo, ou que tenha contra si procedimento já instaurado ou protocolado junto à Mesa da respectiva Casa, para apuração das faltas a que se referem os incisos I e II do art. 55 da Constituição Federal, fica sujeita à condição suspensiva, só produzindo efeitos se a decisão final não concluir pela perda do mandato.
Conforme já assinalei em outras oportunidades, obviamente, a intenção desta norma (voluntas legis) é evitar manobras tendentes a assegurar uma possível impunidade - na hipótese, em âmbito legislativo.
Creio, portanto que, no que concerne à renúncia, a Constituição Federal já contém preceito implícito que veda a burla ao enfrentamento de processo que vise ou possa levar à perda do mandato. Isto é, a Constituição repudia os artifícios utilizados para impedir que sejam devidamente apurados os atos contrários aos seus preceitos.
Volto a afirmar: norma (em sentido amplo) dessa natureza, portanto, já existia em nosso ordenamento jurídico constitucional. A lei da ficha limpa transformou esta hipótese em uma causa de inelegibilidade, dando o tratamento mais condizente com os demais princípios moralizadores inscritos no texto constitucional.
E friso: não é uma simples petição ou requerimento qualquer que ocasiona a renúncia. A renúncia é fruto da valoração feita pelo parlamentar acerca dos fatos a ele possivelmente imputados e da decisão livre e autônoma de rejeitar o mandato eletivo.
Portanto, com as devidas vênias, entendo que a Lei da Ficha Limpa não atinge qualquer dos efeitos do ato de renúncia eventualmente efetivada por candidatos. A renúncia se encontra perfeita e acabada. A lei não retroage, (seria o caso, por exemplo, de uma lei que considerasse nulos os mandatos eletivos exercidos desde a renúncia, considerando a renúncia como fato gerador da nulidade), apenas concede efeitos futuros a um ato ocorrido no passado. Em realidade, a Lei da Ficha Limpa só atingiu os atos que ocorreram após a sua entrada em vigor, isto é, os registros de candidatura, e desde que se enquadrassem na hipótese que ela elegeu como aptas a ensejar a inelegibilidade. Vale dizer, um histórico de renúncia a mandatos eletivos.
Em resumo, considerando-se que toda a lei que estabelece condições para o exercício de um cargo encontra uma realidade pré-configurada e, diante dessa realidade, produz os efeitos que o legislador pretendia produzir, não há nada de especial na lei da ficha limpa para que se possa considerá-la ofensiva ao princípio da segurança jurídica ou da irretroatividade.
Assim, reafirmo o que já enunciei em outras ocasiões: não tenho dúvidas de que a alínea k, ao prever que a renúncia ao mandato constitui hipótese de inelegibilidade, dá concretude à opção constitucional pela avaliação da vida pregressa. A renúncia, neste caso, é ato que desabona o candidato, que demonstra que a sua preocupação com o eleitorado é nula e que sua maior preocupação é com a própria carreira política e com possíveis mandatos futuros.
Assim, como ato reprovável que é, a renúncia tática para fugir ao esclarecimento público do comportamento parlamentar merece ser incluída entre os atos que maculam a vida pregressa do candidato. É elemento constitutivo do princípio republicano que todos, sem exceção, devem arcar com a responsabilidade de seus próprios atos, inclusive os que advêm desse tipo absolutamente reprovável de renúncia.
Por fim, afasto a alegação de inconstitucionalidade da alínea “m” da lei complementar 135/2010, veiculada na ADI 4578.
Também entendo que a condenação por infração ético-profissional macula a vida pregressa do candidato a cargo eletivo, demonstrando a sua inaptidão para interferência na gestão da coisa pública.
De todo o exposto, julgo procedentes os pedidos formulados nas ações declaratórias de constitucionalidade e improcedente o pedido na ação direta de inconstitucionalidade.
[1][1] TÁCITO, Caio. Moralidade Administrativa. RDA, 218: 1-10.
[2][2] FERREIRA, Pinto. O problema da inelegibilidade. Revista Forense, vol. 186, ano 56, nov./dez. 1959, p. 20-28.
[3][3] PINTO, Djalma. A Vida Pregressa no Contexto da Elegibilidade. Boletim Informativo Eleitoral/TER-Ceará. Vol. 21, no 226, 1999, p. 8-14.
[4][4] BRASIL, Assis, Democracia Representativa. 4a Ed. P. 53/54 apud ESTRELLA, Hernani. Direitos da Mulher. Rio de Janeiro: José Konfino
Editor, 1975
[5][5] Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, são hábeis para ser deputados. Exceptuam-se: (...) III- Os que não professarem a Religião do Estado.


VOTO QUALIFICADO DO PRESIDENTE DO STF LIBERA CANDIDATURA DE JADER BARBALHO


O Supremo Tribunal Federal (STF) liberou nesta quarta-feira (14) o registro de candidatura do político Jader Barbalho, com a aplicação do Art. 13, do Regimento Interno da casa, o qual reza, in verbis:
“Art. 13 - São atribuições do Presidente:
IX – proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento
Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra
de ausência de Ministro em virtude de:
b) vaga ou licença médica superior a trinta dias, quando seja urgente a matéria
e não se possa convocar o Ministro licenciado.”
Segundo noticia o site do STF, no ano passado, Barbalho concorreu a uma cadeira do Senado pelo Pará com o registro de candidatura cassado. Ele foi o segundo candidato mais votado em seu Estado. A decisão deste dia 14/12/2011 foi tomada pelo Plenário da Corte ao acolher requerimento apresentado pelo político, que pediu a aplicação de dispositivo do Regimento Interno do STF que prevê o voto de qualidade do presidente da Corte em casos de empate que decorra de ausência de ministro em virtude de vaga ou licença médica.
No mês de novembro, o Plenário iniciou o julgamento do recurso de Jader Barbalho, que foi interrompido por um empate, com cinco votos favoráveis ao político e cinco contra. Diante do impasse, a defesa de Jader ingressou com o requerimento, que foi apresentado ao Plenário pelo presidente Cezar Peluso. “Consulto o Plenário se está de acordo com a proposta?”, questionou o presidente. A decisão pela aplicação do dispositivo foi unânime. O relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, não participou da decisão porque está de licença médica.
A decisão do Supremo foi tomada por meio de um recurso chamado embargos de declaração, que visa esclarecer pontos contraditórios ou omissos de uma decisão colegiada. Esse recurso foi interposto contra uma primeira decisão do Supremo que rejeitou pedido feito por Jader Barbalho no Recurso Extraordinário (RE) 631102, no qual pedia para cassar decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que o declarou inelegível com base em dispositivo da Lei da Ficha Limpa.
Em outubro de 2010, quando o STF julgou esse recurso extraordinário, foi mantida a decisão do TSE contra o político. Meses depois, em março deste ano, o Supremo decidiu pela inaplicabilidade da Lei da Ficha Limpa para as eleições de 2010. Diante desse fato, a defesa de Jader apresentou os embargos de declaração solicitando a RETRATAÇÃO do Supremo, com a aplicação do novo entendimento.
No julgamento que empatou, o ministro Peluso integrou corrente favorável ao acolhimento dos embargos e, portanto, pela retratação da Corte. Além dele, votaram nesse sentido os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello. Em sentido contrário, votaram o relator, ministro Joaquim Barbosa, e os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Ricardo Lewandowski e Ayres Britto.
Na tarde de 14/12/2011, o ministro Ayres Britto lembrou que propôs, na ocasião em que se deu o empate, a aplicação do dispositivo previsto no Regimento Interno do STF. “Embora votando contra a pretensão do senhor Jader Fontenelle Barbalho no julgamento dos embargos, mas diante do empate, eu já entendia, desde aquela ocasião, que Vossa Excelência estava autorizado a fazer uso da norma regimental de desempate”, recordou.
O TSE aplicou a Barbalho sanção prevista na Lei da Ficha Limpa que estabelece que o político que renunciar fica inelegível por oito anos após o fim do mandato que ele cumpriria (alínea 'k' do inciso I do artigo 1º da Lei de Inelegibilidades). Jader Barbalho renunciou em 2001 ao cargo de senador. Na ocasião, o político era alvo de denúncias sobre suposto desvio de dinheiro no Banpará (Banco do Estado do Pará) quando foi governador do Estado.
Portanto, se vê no presente caso dois procedimentos de suma importância para a prática jurídica: o da retratação e o do desempate com voto qualificado do presidente do STF.
Além dos procedimentos acima frisados, também, é de se ressaltar o papel do Embargos de Declaração, que, por muitas vezes, é espancado pelas Cortes país a fora com instrumento protelatório.
As consequências da aplicação protelatória é deveras penalizadora à parte, e, sobretudo, ao advogado, pois se estará colocando o mesmo numa zona de desconforto capaz de habilitar julgamentos depreciativos sobre seu trabalho.
Penso que este procedimento deve ser visto com melhores olhos pelos julgadores, e, evidentemente, com parcimônia pelos colegas advogados. Jamais, deveria se ter um espírito amedrontador em relação aos embargos de declaração. O presente caso é um bom exemplo, em que pese a evidência do direito.


JOSÉ LUÍS BLASZAK
Advogado e Professor de Direito Administrativo
blaszak@hotmail.com